quarta-feira, maio 17, 2006

Molhando a Mão de Quem te Morde

Quase todos os dias, no que gostamos de chamar de sociedade urbana, somos assaltados. É só um assalto sem gravidade, geralmente sem o emprego de violência física, e perfeitamente legal. Mas não deixa de ser assalto. Uma mão exigente e vazia é estendida para nós e colocamos o dinheiro nela. Sou de total apoio à campanha que São Paulo está fazendo contra as gorjetas. De todos os hábitos aprazíveis que o progresso e riqueza deturparam, um dos mais prejudicados foi a gorjeta. O que se costuma ser um bônus ocasional para premiar um zelo e uma atenção especiais transformou-se numa obrigação permanente e incômoda, uma forma de chantagem que é praticada em graus variados, desde a lanchonete até o restaurante quatro estrelas, com inúmeras paradas no caminho. A origem da palavra é interessante e reveladora. De acordo com o "Oxford English Dictionary", a palara "tip" (gorjeta) provavelmente assumiu o seu significado atual no século XVII, como parte do que o dicionário descreve com admirável precisão como "gíria de malandro". De uma forma ou de outra - talvez a passagem de um ou dois séculos tenha ajudado - a palavra se tornou respeitável e o ato de dar gorjetas inevitável. Hoje-em-dia, os abutres da gorjeta estão por toda parte. Na França, por exemplo, um homem que entra em um toalete público para se aliviar dá de cara com uma mulherona de bigode olhando para ele de cara amarrada. Defronte dela tem um pires, com algumas moedas sugestivamente espalhadas. Se ele não contribuir para aumentar a coleção, ouvirá alguns palavrões murmurados e possivelmente receberá um piparote com um pano molhado. Na França você tem que pagar pelo seu pipi, mas aqui, no Brasil, não ficamos muito atrás não... O pires vira uma caixinha de papelão revestida com papel de presente usado e a mulherona, vira um senhor idoso, de barba branca, quase morrendo, ou senão uma menina na faixa dos 16 anos, com uma penca de crianças no colo... E acreditem! São todos filhos dela! Eu freqüentemente me pergunto por que será que a maioria de nós está disposta a pagar uma sobretaxa além do que já pagou pela comida, bebida ou serviços. O que causa a nossa infinita generosiddae com relação a pessoas geralmente rabugentas e negligentes? Esta não pode ser a razão original para se dar gorjetas, que surgiram para recompensar serviços acima e além do dever. Será que queremos ser apreciados pela Máfia, que ficamos contentes em pagar um bom dinheiro pelo esgar de dois segundos que passa por um sorriso? Ou somos apenas benevolentes que se deliciam em ajudar os menos afortunados ao entregar-lhes bem dobradinho um pouco de leite da bondade humana? Não, definitivamente não! Bondade não tem nada a ver com isto. Nós damos gorjetas porque sentimos, por um motivo ou por outro, que temos que fazê-lo - que se não fizermos, sofreremos um vexame ou coisa pior, e que teremos que pagar por não pagar.

3 comentários:

Daphine disse...

Rafael... Pensei que ia passar aqui e deixar um: " Ah legal seu blog e blá, blá, blá".... e me deparo com este texto, que me fez parar e pensar.

Tenho um projeto com moradores de rua, ainda no inicio... Dia desses estava conversando com uma moça responsável por um albergue que abriga esses em dias de chuva e conversamos sobre o tema: esmola! E te diria que: Muitos (não todos) pedem esmola para comer, pq têm fome! Talvez, pessoas pedintes no meio da rua, só sejam o reflexo de um país corrupto, miserável e individualista como o nosso.

Ainda não tenho uma opinião concreta sobre este tema, mas amei o seu texto!!! Vou até favoritar seu blog! Muito Bom!

Bjão

Daphine disse...

Bom,

Primeiramente sim, eu não só me encaixo nos "Bonecos Manipulados", como nos "Conformados" e "Pobres de espíritos".

Não vou escrever muito, até mesmo pq não tem razão alguma (cada um com a sua opinião), mas só quero dizer que eu acredito e muito que TODOS NÓS TEMOS UM PAPEL NA SOCIEDADE E CABE A NÓS DESEMPENHAR ESTE PAPEL DA MELHOR FORMA POSSÍVEL.



Até +

Sheila Campos disse...

Lolito querido!

Adorei seu texto! Gosto muito de como escreve, seu estilo é agradabilíssimo!

Até quando trata de algo tão polêmico e incômodo como a "gorjeta". Concordo com você; a despeito das injustiças, mazelas, roubos, etc, acho inaceitável que sejamos coagidos a deixar trocados para homens que passam os dias parados, sob árvores, conversando sabe-se Deus o quê entre si, SOB RISCO DE TERMOS O VEÍCULO RISCADO SE NÃO O FIZERMOS - só para citar um exemplo!
Por que essas pessoas não buscam, também, um outro caminho? Por que não procuram estudar, por que acham inaceitável um emprego humilde, mas honesto? O brasileiro, com sua mania de "torrar" até o último centavo que ganha, mês após mês, não entende a eficiência da poupança - ganhe você quanto ganhar!
Lembro-me de uma amiga jornalista que me contou que, um dia, se viu às voltas com cheque especial, contas no vermelho, cartão de crédito "estourado", etc... E recebeu a oferta de um empréstimo de sua faxineira que, sozinha, tinha comprado um lote, construído uma casa, sustentava uma filha numa faculdade particular e ainda tinha uma poupança!
Não há desculpas. Acho que o povo precisava resolver "tomar as rédeas" nas próprias mãos, também.